
A terapia do “choquinho” me faz lembrar o que vi, li e ouvi sobre tortura. O mesmo procedimento utilizado para fins analgésicos, ou seja, para abrandar e suprimir a dor, poderia ser aplicado para causá-la. É apenas uma questão de intensidade da corrente elétrica. Mesmo nas condições da fisioterapia, o aparelho pode gerar desconforto se não for regulado na freqüência adaptada à sensibilidade do paciente. O que poderia causar se utilizado para fins não terapêuticos?
Antonio Ozaí da Silva
Foi a última sessão de fisioterapia. Os procedimentos são simples: exercícios de alongamento, vinte minutos sob aplicação de Ondas Curtas e mais vinte sob “choquinho”. Primeiro, a Diatermia. Do grego diathermaínein, a palavra é definida pelo Aurélio como: “Aplicação terapêutica da eletricidade, com base no desenvolvimento de calor, em virtude de correntes induzidas no interior dos tecidos, por aplicação dum campo externo de alta freqüência”.A Diatermia reproduz um princípio antigo: a conhecida “compressa quente”, só que através de uma máquina ligada à eletricidade. Mais uma vez, a ciência apropria-se da sabedoria popular, desenvolve teorias e aparelhos que potencializam os efeitos – benéficos ou maléficos. A aplicação de calor sobre o corpo objetiva estimular a circulação sanguínea, o combate a inflamação e alivia a dor. É, portanto, analgésico.
O alarme da máquina interrrompe o estado de sonolência e indica que terminou. O paciente é convidado à terapia do “choquinho”. Após tantos “choquinhos”, pergunto à fisioterapeuta sobre o princípio do tratamento. Ela explica que é um procedimento de analgesia. O termo técnico é TENS: Estimulação Nervosa Elétrica Transcutânea. De novo, o uso de corrente elétrica aplicada diretamente à região dolorida por meio de eletrodos.
A terapia do “choquinho” me faz lembrar o que vi, li e ouvi sobre tortura. O mesmo procedimento utilizado para fins analgésicos, ou seja, para abrandar e suprimir a dor, poderia ser aplicado para causá-la. É apenas uma questão de intensidade da corrente elétrica. Mesmo nas condições da fisioterapia, o aparelho pode gerar desconforto se não for regulado na freqüência adaptada à sensibilidade do paciente. O que poderia causar se utilizado para fins não terapêuticos?
Deitado, sob “choquinhos” que até davam uma sensação entorpecente, pensei no sofrimento dos que foram submetidos a choques elétricos em sessões de tortura que transformavam o tempo numa eternidade insuportável. Não pertenço à geração que sofreu no corpo e, em muitos casos, pagou com a vida, pela coragem de desafiar os ditadores e seus acólitos; aqueles que ousaram defender a liberdade e acreditaram na aurora de um novo tempo; os que fertilizaram o solo árido da democracia com o sangue vertido pela violência dos seus algozes.
Não sou daquela geração, mas conheci alguns dos sobreviventes. A tortura deixou marcas indeléveis, físicas e psicológicas.[1] Sei o que sofreram pelas conversas, relatos biográficos e, sobretudo, livros e filmes.[2] Sob o efeito dos “choquinhos”, lembrei-me deles e, especialmente, do que li em obras como Batismo de sangue, do Frei Betto[3]; recordei-me de filmes como O que é isso companheiro?[4], Lamarca, Zuzu Angel, etc. Lembrei-me que chorei ao assistir as cenas de tortura em Zuzu Angel e que a fala do eclesiástico tentando justificar o injustificável foi-me nauseante. Com estas reminiscências, o tempo parecia prolongar-se sob o efeito analgésico da corrente elétrica.
A minha dor foi pequena diante do sofrer que lançou as bases do tempo presente. Ela foi suportável – até porque há os remédios e fisioterapia ao alcance. Talvez eu seja sentimental demais por chorar ao assistir a um filme como Zuzu Angel, mas minhas lágrimas foram sinceras e expressam o tributo aos que sofreram para que tenhamos liberdade de expressão e até mesmo o direito de escolher os governantes, ainda que a democracia seja incompleta e decepcione. São as contradições da vida.
A máquina sinalizou que a sessão terminara e me fez voltar à realidade. Meu corpo estava melhor, a dor cedeu. As lembranças, porém, me acompanharam. Não esquecer é também uma forma de dizer não à repetição do passado.
Acesse o Blog do Ozaí e assista ao trailer do filme Zuzu Angel: "Lembrei-me que chorei ao assistir as cenas de tortura em Zuzu Angel e que a fala do eclesiástico tentando justificar o injustificável foi-me nauseante. Com estas reminiscências, o tempo parecia prolongar-se sob o efeito analgésico da corrente elétrica", professor Antônio Ozaí da Silva.
http://antoniozai.wordpress.com/
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
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