
Urariano Mota

Eu também já fui como você, Alcides. Eu já fui igualzinho a você, menino pobre que nem sempre tinha o que comer. Esclareço, pior dizendo: depois da morte do meu pai, quase nunca tinha pra comer. Mas se tem uma coisa que me fazia igualzinho a você era o gosto pelos livros, pela leitura, pela palavra impressa, que eu lia como um crente abre a bíblia e crê na palavra de Deus. Eu também já fui como você, até no tipo físico, até na cor, até na forma da tua pele. É lógico, não fui igual a você na aprovação das duras provas do vestibular, a ponto de ser classificado em primeiro lugar. Isso não, eu jamais consegui, embora sonhasse em fazer igual a você, quando tinha quinze anos.
Lembro de um dos escândalos no bairro de Água Fria em 1966: o filho de um lixeiro havia passado no vestibular de engenharia. Miro, lembro bem. Ele era apontado como exemplo para nós, que já gostávamos de estudar com o mesmo amor com que jogávamos bola. Por isso, foi com uma impressão de coisa conhecida, familiar, que abri o jornal há três anos e soube que você havia passado no vestibular lá em cima, no primeiro lugar. Então eu me disse, há três anos: Alcides é meu igual, Alcides é o que eu sonhava ser. Esse irmão eu conheço.
E mais fui me identificando ao saber que você gostava de pensamentos como este: “A felicidade se conquista aos poucos. A felicidade é adquirida por cada pedra tirada do caminho”. Que coisa, não é, meu irmão? Eu também, quando era contínuo de A F Motta e Companhia Limitada, enquanto limpava o lixeiro escarrado pelo português dono da firma, ia escondido para os livros de autoajuda, que me consolavam com pensamentos assim: “você é aquilo que imagina ser”. Então o contínuo estufava o peito para aguentar até a noite, quando ia para o curso clássico no ginásio pernambucano. Assim como você acreditava na felicidade, eu também acreditava que a gente crescia e melhorava de vida só pela força do pensamento positivo.
A vida depois me ensinou que as coisas não se passavam exatamente dessa maneira. Entre o sonho e a realização, quanto trabalho, quanto suor, quanta coisa a gente tem que engolir, Alcides. Quanta desrespeito a gente mastiga, mastiga, engole inteiro e o corpo devolve em tumor que explode no corpo da gente, meu irmão. Por isso entendi quando você, sem a experiência destes meus 59 anos, encarou os delinquentes, não ouviu a sua mãe, que lhe gritava para entrar, entrar urgente na sua casinha que mais parece casa de pombo, só tem entrada, e você, “não”, parecia se dizer, “será que eles não vêem que eu sou um jovem de futuro? Será...?”. E os marginais não viram, ou de raiva porque eles próprios não têm mais qualquer futuro, apagaram com o teu, meu irmão. Por isso não gostei das notícias que vieram depois, quando toda a imprensa disse que você morrera por engano. Que você morreu porque foi confundido com um consumidor de drogas. O que isso quer dizer, mano? Que se você fosse usuário, comprador de maconha, estava certo receber duas balas na cabeça? O que é isso? A tua morte acende e levanta uma revolta imensa na gente, porque o crime e a barbárie cortaram o esforço de civilização em um jovem pobre. Mas a tua morte também nos ensina que não existe execução certa, que não há morte boa para ser aplaudida. Entre o uso da droga e a decência, entre o consumo de drogas e o amor aos livros, às vezes não existe mais que uma casinha de diferença, assim como na tua vila de casinhas de pombo. Nenhuma morte é justa, Alcides, tu bem sabes, tu bem sabias quando criaste dificuldade para que o teu vizinho não fosse morto. E terminaste morrendo no lugar dele.
Mas a tua morte, por fim, deixa em todos nós a maior lição, Alcides. A lição é esta, meu irmão, meu igual: que mais vale a luta que a vitória. Você esteve no bom combate, Alcides. Você esteve na luta de reunir forças por acreditar que pelo teu trabalho e estudo poderias ajudar a tua mãe, os teus amigos, o teu povo. Filho de uma ex-catadora de lixo, recuperaste ao fim a dor da tua mãe para todos os jovens, até mesmo para os maduros de todo o Brasil..... Mais vale a luta que a vitória. Eu acho que aprendi, mano. Eu juro que, quando crescer, eu quero ser igualzinho a Alcides.
Urariano Mota, escritor e jornalista, autor de “Soledad no Recife” (Boitempo – 2009) seu último romance, indicado como um possível livro do ano pelo conceituado site Nova Cultura, elaborado e administrado na Alemanha, com os destaques literários da CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa. É colunista do site Direto da Redação, edita o blog SAPOTI DE JAPARANDUBA http://urarianoms.blog.uol.com.br/
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