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Ativismo com atavismo sem saudosismo - mas com um toque de pragmatismo
Rosa PenaNão ia ficar sentada vendo meus sonhos passarem. Também não suportava mais discutir relação e quem tem razão. “Diários de Motocicleta” foi fator decisivo.
Não tenho muito tempo, ainda assino cartão de ponto, não tenho mais disposição para pilotar uma moto, um buggy, sim! Não tenho grana para ir aos Andes, ao Nordeste ainda dá; não tenho saco para passar roupa, biquínis e cangas lá bastam; não tenho o Guevara, mas tenho o meu Transgressor.
Fui de avião até Natal. De lá, comecei a percorrer e rever durante onze dias o Nordeste longe das capitais. Sem disfarces, sem proibições, sem cinismo, sem pretensão.
Conheci Juvêncio, caboclo sanfoneiro, sem idade, sem CPF, sem servidão. Desconhece o que não se pode fazer, pois se preocupa com o que pode ser. Casa de meia água, com vista para muita água: o mar. Sarado de tanto remar, não se preocupa com ginástica, nem com barriga. Rugas de sol, rugas de sorrisos, rugas de caretas.
Não vive com medo, não tem inimigos imaginários, não sabe o que é intriga, não tem e-mail, não tem vírus, tem carteiro que vem de quinze em quinze dias com poucas notícias da capital; tem bicho de pé, não tem shopping, tem a venda do Ernesto; não tem Visa nem Credicard, tem peixe para pagar; não tem estresse, tem sanfona, não tem TV, tem rádio de pilha; não conhece o Bush, nem o Bin, portanto não tem lado para escolher; não tem que usar nem camisa social, nem camisinha, não tem amantes, tem mulher, mãe de seus três filhos que faz crochê e bota na venda, usa tranças no cabelo sem Imedia da Loreal. Tem peitos caídos e vividos, sem silicone.
Aprendeu a ler e escolhe o pouco que vai ler. Não lê sobre guerra. Os filhos estudam na escola miudinha, onde a mestra é a que aprendeu um pouco mais e eu imagino que nada aprenderão. A sabida sou eu? Acompanham o pai no conjunto de forró que toca em frente à Igreja e à venda, auxiliam na pesca. Não terão futuro, como o pai, penso eu. E nós, qual foi o nosso?
Não tem pena de si próprio, não tem raiva de quem tem dinheiro, não faz de sua pobreza bandeira de injustiça social. Não tem religião, tem Deus e diz que Ele assim resolveu. Não blasfema a sorte.
Quem tem mais fé? Ele ou eu?
Político, para ele, é mais um infeliz que não consegue gostar mais de macaxeira. Made in USA é coisa que turista agoniado usa quando vem para Baía Formosa tirar retrato.
Doença todo mundo tem, médico ninguém tem. Nem lá, nem aqui. Não precisa pagar a Amil, nem mandá-la para a puta que pariu.
Polícia lá também não tem, aqui tem e adianta?
Morrer todos nós vamos, quando não sabemos.
No mar, morrer no mar, prefere Juvêncio. Nós? Safenados, numa UTI com ar refrigerado.
Três dias conversando com ele, descubro que sou eu a canhota nas idéias. Sou eu a enjaulada nas formalidades, fui eu que perdi o nome para virar um RG. Choro as luas que não vi, o sol que não senti, os risos que não dei, a sereia que não tive fantasia suficiente para ver ou ser.
Mas não sou eu quem tem a grana e o poder?
Será que Chopin não ia adorar tocar no coreto da praça e comer peixe frito?
Uma tragada no cigarro de palha, um gole na batida de acerola de Juvêncio, um tchau e uma certeza.
Arre, égua! A pobre sou eu.
Livro PreTextos
http://www.rosapena.com/
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Rosa Pena (Rio de Janeiro-RJ). Professora e administradora de empresas. Especialista em recursos audiovisuais e artes cênicas. Trabalhou na Divisão de Multimeios da Educação na Secretaria de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, com projetos ligados a cinema, teatro, música e literatura. Compulsiva para ler e escrever, considera a Internet a grande biblioteca contemporânea. Tem livros virtuais publicados e quatro livros editados no papel: Com licença da palavra, antologia do grupo Pax Poesis Encantada (2003), PreTextos, seu primeiro livro solo, onde reúne crônicas e contos de sua autoria (2004), na sequência UI! (2007) e Tarja Branca (2010). Mais em seu site: http://www.rosapena.com/
Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
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(Para meu primo, Jorge Luiz Klueger, e para o Deoclides)
Urda Alice Klueger*Eu estudava na antiga Escola São José, na Garcia, em Blumenau/SC, e ela se situava na Rua-Tronco do meu bairro. Eu morava na Antonio Zendron, uma rua lateral da Rua-Tronco, e que entrava por um vale poucos metros antes do Quartel do Exército, o 23º Batalhão de Infantaria. Pela lembrança que tenho, naquele dia as aulas foram suspensas mais cedo, e houve um tempinho para flanar pelo caminho. Só que cheguei no entroncamento da minha rua, e acho que foi o meu primo Jorge Klueger quem disse:
- A Rua está fechada ali no quartel. Não passa ninguém pra lá nem para cá.
Claro que criança com tempo não podia perder a oportunidade de ver um acontecimento daqueles, ainda mais que nem sabíamos o que estava acontecendo – e andei mais uns metros, e realmente a rua estava fechada na frente do quartel, cheia de soldados de poderosas armas nas mãos, e tudo aquilo era muito excitante... até que meu mundo ruiu: lá do outro lado, no meio do pessoal que não podia passar para cá, que não podia voltar para casa, segurando a sua bicicleta, estava o meu pai. E o pior: nem ele podia voltar para casa, NEM EU PODIA IR ATÉ LÁ E SUBIR NA BICICLETA DELE! Nunca acontecera nada parecido nas nossas vidas, e então alguém por ali falou pela primeira vez a palavra “Revolução”, que foi a que nos impingiram para disfarçar as palavras “Golpe Militar” e “Ditadura”, e então eu soube o que estava acontecendo: aquilo era uma Revolução! A gente não poder mais chegar perto do pai da gente fazia parte de uma revolução, e, afinal, ela viera, tão anunciada fora, principalmente pela Igreja, dominicalmente pelos nossos padres locais, e diariamente pela Rádio Aparecida, que era mais ou menos a Rede Globo daquela época. Estávamos a 31 de Março de 1964, o que, nas minhas contas, está fazendo 40 anos!
40 anos, e como me lembro! Eu era bem pequena para guardar tantos dados, mas até hoje sei que no Rio Grande do Sul havia o 5º Exército, que não estava gostando muito da coisa do golpe que acontecia, e que era necessário que toda a nossa rapaziada do 23 BI se fosse para o sul, para enfrentar o tal 5º Exército. E lá se foram eles, ainda com muitas mulas puxando cozinhas portáteis e outras coisas, pois o progresso já chegara a ponto de os soldados, mesmo, irem para a “revolução” amontoados em cima de caminhões. (Ah! As mulas do 23 BI! Um dia conto sobre elas!)
Naquele primeiro dia acabei indo para casa com meu primo Jorge Klueger, mas nos dias que se seguiram, quanto choro rolou na maioria das casas do meu bairro, por causa dos rapazes que tinham ido para a “revolução”! A verdade é que não se disparou um tiro, e todos os rapazes voltaram com vida e saúde, e houve um dia em que colhemos todos as flores do nosso farto jardim, e fomos para a cidade esperar a volta dos soldados. Todos os moradores de Blumenau pareciam estar lá com seus jardins nos braços, e quando os soldados chegaram, já tinham passado em outras cidades primeiro e já vinham cobertos de flores, nos bonés, nos bolsos, nas armas, e quase não havia como enfiar mais flores sobre eles. Eu e minha família ficamos na marquise do Edifício Visconde de Mauá, na Rua XV, em Blumenau, despetalando flores para jogar neles, e eu estava chorando de emoção porque um soldado de quem gostava muito, o Deoclides, havia voltado vivo!
E a gente achou que as coisas estavam resolvidas. Como éramos ingênuos! Mal começava o longo período sob a bota do imperialismo internacional, dirigidos por pequenos militares sem nenhuma capacidade política (andei lendo, recentemente, livro estarrecedor sobre o assunto), período em que os amigos da gente sumiam e eram torturados ou tinham que cair na clandestinidade e ir viver em outros países, e onde até o meu querido professor de Português, Evaldo Trierweiler, que dizia umas verdades sobre justiça social nas salas de aula, teve que amargar a bota e o interrogarório dos “revolucionários”, lá num navio, em Itajaí.
Arghhhh! E quanto tempo eu demorei para entender o que pude!
*Urda Alice Klueger é escritora e historiadora. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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