sexta-feira, 5 de março de 2010

Pedra no inimigo comum


Urda Alice Klueger*

Tenho até que marcar o dia para nunca esquecer: 02.03.2004. Vi as imagens no Jornal do Almoço e ainda estou rindo de orelha a orelha. Era uma coisa que se esperava, que se sabia que viria, mas não pensava que seria tão já: sunitas e xiitas unidos, no Iraque, tacando pedra em soldados estadunidenses armadíssimos, que tiveram que fugir da multidão, abrigar-se no seu jipe de guerra e dar no pé.

Vamos tentar entender o que são sunitas e xiitas – ambos são muçulmanos. É a mesma coisa que entre os cristãos: há católicos e protestantes. Daí você vai dizer que com os cristãos é diferente, que católicos e protestantes não se matam – que bobagem, meu amigo! O fato de que aqui no Brasil as disputas entre as diversas seitas cristãs ficarem a nível de pequenas discussõezinhas bíblicas e grandes desprezos de vez em quando não quer dizer nada. Até hoje católicos e protestantes se matam, como é o caso da Irlanda do Norte, e se formos procurar exemplos na História, ao invés de uma crônica sai um compêndio. Vamos a um deles: a Noite de São Bartolomeu. Ela aconteceu na França em 24 de agosto de 1572. Começou pelas Tulherias, que era então o palácio real, e estendeu-se por mais algumas semanas, alastrando-se por todo o país. Num instante se mataram 10.000 huguenotes, que era como se chamavam os protestantes de lá, e há centenas e centenas de relatos dos requintes de crueldade com que os cristãos tratavam os outros cristãos, tipo assim:

- “ Achei um bebezinho aqui na torre! Levantem as lanças, para ver quem consegue espetá-lo primeiro, quando eu o jogar!”

Foi bem barra pesada o que aconteceu com os cristãos huguenotes na França do Século XVI, mas é só um exemplo. Há pencas de outros, onde cristãos mataram cristãos em nome de Jesus. E há muçulmanos que matam muçulmanos em nome de Alá. Tudo a mesma coisa.

Então, temos os sunitas e os xiitas, as duas principais facções lá do mundo muçulmano. E o Iraque vinha sendo governado por um sunita chamado Saddam Husseim fazia muito tempo, o que quer dizer que os sunitas estavam por cima da carne seca, enquanto os xiitas tinham que amargar a necessidade de ficarem quietos se não quisessem se incomodar. Até que um cara chamado Bush II, mais conhecido como Mister Cachorro Louco, resolveu ir lá e se apossar do petróleo do Iraque, e foi lá e bombardeou tudo, e achou que estava mandando no país. É claro que não é assim que se domina nada, ainda mais um país com uma cultura de tantos milhares de anos. Os católicos e os protestantes de lá, isto é, os sunitas e xiitas, num primeiro momento tiveram que ficar quietos e engolir a invasão – até passaram a se reorganizar, os xiitas achando que poderiam voltar, um dia, ao poder que um dia já fora deles, e ressuscitaram suas tradições, seus rituais e seus dias santos que estavam proibidos, e voltaram a se pegar de pau com os antigos adversários, os sunitas, já pensando e programando o futuro quando conseguissem correr com o Mister Cachorro Louco. Até que chegou o dia 02.03.2004.

No dia 02 de março de 2004 os xiitas estavam comemorando um dia santo seu que estivera proibido quando a turma de Saddam Hussein governava. Como alguns xiitas vêm colaborando com o invasor que quer o petróleo, seus opositores não tiveram dúvida: fizeram uma série de atentados aproveitando o dia santo, e acabaram morrendo perto de 140 pessoas. Grande pânico no Iraque, os feridos se contavam às centenas, e na praça pública os católicos e protestantes de lá tentavam enfiar o dedo nos olhos uns dos outros, e a confusão estava grande. Foi então que o jipão do invasor chegou, e os soldados estadunidenses cheios de armas poderosas resolveram saltar e botar ordem na casa. Que aconteceu?

Quando avistaram o verdadeiro inimigo, xiitas e sunitas esqueceram as diferenças e se lembraram de que Alá era um só, e, unidos, juntaram as primeiras pedras que encontraram, e saíram todos correndo atrás dos soldados, botando a correr o inimigo comum.

É, seu Bush, seu Bush, ainda estou rindo até as orelhas! Foi uma data inesquecível!

Blumenau, 04 de Março de 2004.



*Urda Alice Klueger, escritora e historiadora, colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz

Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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PressAA

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